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Calças compridas, polêmicas e a emancipação feminina

Gabrielle Chanel: ela revolucionou a história da moda propondo a simplificação das modelagens e o uso das calças pelas mulheres. Reprodução

Algo comum na atualidade, o uso de calças compridas pelas mulheres nem sempre foi bem aceita. Vista como uma representação da masculinidade, usar a peça pelo público feminino poderia até mesmo resultar em prisão e a entrada desse tipo de roupa nos armários delas foi algo que levou bastante tempo.

Contrariamente ao que se via no mundo ocidental, era comum entre as mulheres do oriente o uso de calças há milhares de anos. Nos territórios do então Império Otomano (atual República da Turquia), por exemplo, a prática fazia parte da cultura ligada ao vestuário de homens e mulheres.

De acordo com o site Hypeness, a apropriação dessa vestimenta pelas mulheres ocidentais não se deu originalmente por conta da luta pela igualdade de gênero, mas sim por influência das mulheres otomanas. Segundo JOB (2021), em artigo publicado no site “Messy Nessy”, em uma visita à Constantinopla (atual Instambul), a escritora e feminista inglesa Lady Mary Wortley Montagu ficou impressionada ao ver que naquele país as mulheres podiam andar pelas ruas desacompanhadas e usar calças compridas, vestuário que na Europa era restrito aos homens. Na volta para casa, Lady Mary levou em sua mala algumas peças iniciando um intenso debate entre a elite da moda.

Ilustração de trajes típicos do Império Otomano mostrando que a calça era usada tanto pelos homens quanto pelas mulheres. Reprodução

BREVE HISTÓRICO

Segundo matéria publicada pela revista Época (2014), as calças teriam sido inventadas por nômades chineses há 3400 anos. A teoria é reforçada por achados arqueológicos de duas peças com mais de 3 mil anos e que seriam as mais antigas calças de que se tem conhecimento até a atualidade.

Com pernas retas e virilha larga, as duas calças confeccionadas em lã foram encontradas em um antigo cemitério de Yanghai, na bacia do rio Tarim, pelos arqueólogos Ulrike Beck e Mayke Wagner, do Instituto Arqueológico Alemão de Berlim.

“Levis Strauss inventou o jeans em 1873 e Chanel deu calças às mulheres para lhes permitir maior ‘senso de liberdade’. Mas foram os nômades chineses os primeiros a perceber que peças de pano acompanhando o desenho das pernas facilitavam a vida de quem precisava cavalgar”, diz a revista Época.

RESISTÊNCIA

RASPANTI (2022), cita que foi apenas no final do século XIX que as mulheres começaram a usar calças compridas no continente europeu. Ainda de acordo com a autora, fatores como a participação feminina no mercado de trabalho e a prática esportiva fizeram com que as mudanças no vestir ocorressem, o que não se deu de forma tão simples. A resistência foi grande e algumas mulheres chegaram a ser xingadas e até agredidas nas ruas pelo uso de um traje tipicamente masculino.

Charge da revista The Punch mostra a reação do público diante de duas mulheres usando calças bloomers. Reprodução

Para exemplificar também essa resistência, no ano de 1800 passou a vigorar na cidade de Paris (França), uma lei que estabelecia a pena de prisão para as mulheres que usassem calças compridas em público sem prévia autorização da polícia. Em 1930, a lei foi aplicada pela última vez, quando o comitê olímpico francês retirou as medalhas da atleta Violette Morris por ela insistir no uso das calças. Em 1892 e 1909 a lei sofreu emendas que permitiram que as mulheres usassem a peça apenas se estivessem de bicicleta ou a cavalo. Curiosamente, a velha lei só foi oficialmente derrubada bem mais tarde: em 2003.

CALÇAS COMPRIDAS E A MODA

A luta por mudanças no vestir também marcou a Era Vitoriana (1837-1901), marcada no mundo da moda feminina pelos vestidos volumosos e pesados, cheios de babados, rendas e golas altas que não agradavam a todas as mulheres. Tanto não agradavam que ainda naquele período insurgentes feministas passaram a exigir o direito de usar roupas mais confortáveis dando início a um movimento chamado de “Moda Racional”, argumentando que calças e outros estilos de vestidos seriam mais práticos de serem usados, além de permitirem uma melhor movimentação.

Antes de prosseguir, vale abordar mais algumas questões ligadas ao período Vitoriano. De acordo com PITTA (2020), “a aparência das damas era de vulnerabilidade, as roupas eram desenhadas para fazerem as mulheres parecerem fracas e impotentes, como de fato elas eram. As cores eram claras. O espartilho, que fazia mal à coluna e deformava, inclusive os órgãos internos, as debilitava ainda mais, impedindo-as de respirar profundamente. Além de elegante, o espartilho era considerado uma necessidade médica à constituição feminina, usado, inclusive, em versões juvenis a partir dos três ou quatro anos”.

Trajes femininos típicos da Era Vitoriana: destaque para os volumes dos vestidos. Getty Images/Reprodução

Destacando a importância da luta feminista por mudanças no vestir, ainda no século XIX surgiu a primeira calça feminina ocidental. O modelo, conhecido como bloomer, em referência ao nome de Amelia Jenks Bloomer, editora de um jornal voltado ao público feminino e que ajudou a promover o estilo, foi criado por Elizabeth Smith Miller para reformular e tornar mais funcional a moda feminina. A bloomer, usada sob saia ampla, era bufante e apertada nos tornozelos por meio de babados ou laços. Lembrava as calças das mulheres muçulmanas do Oriente e o uso da saia por cima dava ao visual uma espécie de combinação entre os estilos de dois mundos.

Embora tendo representado uma nova era para o visual feminino, poucas mulheres adotaram o bloomerismo o qual acabou não sendo bem aceito pela sociedade. A imprensa considerou a vestimenta uma piada, a exemplo da revista The Punch que chegou a publicar charges ridicularizando e atribuindo comportamentos masculinizados às mulheres devido ao uso da calça.

Segundo NOVAES (2022), “as duras críticas causaram a morte do modismo curto, porém notório, e de extrema importância para a luta feminista. A vestimenta acabou abandonada por depor contra a própria causa. Amelia foi uma das últimas a resistir usando o modelo, até 1859 quando o abandonou de vez”.

Ilustrações sobre Amelia Bloomer e o modelo de calça que ela ajudou a promover. Reprodução

Mais tarde, na primeira década do século XX, esse estilo reapareceu (com uma nova roupagem) graças ao trabalho do estilista francês Paul Poiret. Considerado considerado um dos principais estilistas franceses durante aquele período, ele apresentou em seus desfiles a calça odalisca, de inspiração oriental.

Apesar da importância de Poiret, quem de fato deu mais força ao uso da calça comprida feminina foi Coco Chanel. Ao mudar o conceito de elegância e simplificar as modelagens, a francesa promoveu uma verdadeira revolução na moda ao fim da Primeira Guerra Mundial. Contudo, por deixarem parte das pernas à mostra, as calças compridas ainda eram consideradas escandalosas.

A “calça odalisca”, criação de Paul Poiret inspirada nos trajes femininos orientais. Met Museum / Reprodução

A POPULARIZAÇÃO DAS CALÇAS FEMININAS

Com o passar das décadas, o uso de calças pelas mulheres seguiu tendo altos e baixos. Mesmo no começo do século XX, usá-las pelo público feminino só era permitido em certas ocasiões, como na prática de atividades esportivas – a exemplo do tênis, e para andar de bicicleta. Já a popularização da roupa foi ajudada por figuras icônicas do cinema como as atrizes Marlene Dietrich, Katherine Hepburn e Greta Garbo. Dietrich, por exemplo, foi uma das primeiras mulheres a aparecer de calças compridas em público ao vestir um smoking e cartola na estreia do filme “Marrocos”, em 1930.

Ainda falando na popularização das calças compridas junto às mulheres, outro ponto que não pode ser ignorado diz respeito ao cenário causado pela Segunda Guerra Mundial, evento que representou uma verdadeira virada também para a história da moda.

Com a presença maciça dos homens nos campos de batalha, coube às mulheres ocupar os espaços nas fábricas e, diante disso, as calças se mostravam mais práticas e funcionais para o trabalho ganhando um papel essencial no vestuário feminino. Por sua praticidade as calças foram aos poucos rompendo com os preconceitos e os incômodos gerados junto aos mais conservadores.

Da esquerda para a direita: Marlene Dietrich, Katherine Hepburn e Greta Garbo entre as famosas que aderiram ao uso das calças. Reprodução

Nos anos 1950 novos modelos surgiram, com destaque para a calça cigarette. Nesse mesmo período o jeans caiu no gosto da juventude, deixando de lado o estigma de roupa de trabalho para se tornar um item de moda que remetia à rebeldia dos mais jovens. Não demorou muito e se passou a ver as garotas dos chamados Anos Dourados circulando com jeans, meias soquete e rabo de cavalo.

Daí em diante o uso da roupa foi se tornando cada vez mais comum e, nos dias de hoje, é impossível imaginar um guarda-roupas feminino sem ao menos uma calça comprida.

REFERÊNCIAS:

ÉPOCA, 2014. As calças mais antigas já encontradas – e como elas continuam na moda. Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/vida/noticia/2014/06/arqueologos-encontram-calcas-mais-bantigasb-do-mundo-e-elas-continuam-na-moda.html. Acesso em: 01/09/2022.

Hypeness, 2022. “Mulheres e calças: uma história não tão simples e um pouco mal contada”. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2021/04/mulheres-e-calcas-uma-historia-nao-tao-simples-e-um-pouco-mal-contada/. Acesso em: 01/09/2022

JOB, Z. The Not-So-Straghtforward story of Women and Trousers. Messy Nessy, 2021. Disponível em: https://www.messynessychic.com/2021/03/17/the-not-so-straightforward-story-of-women-and-trousers/. Acesso em: 31/08/2022.

NOVAES, J. “A primeira calça feminina: Bloomer”. Disponível em: https://modaoldlook.wixsite.com/blog/single-post/2016/04/21/a-primeira-cal%C3%A7a-feminina-bloomer. Acesso em 01/09/2022.

PITTA, Denise. A Era Vitoriana – Especial com a história, ilustrações, roupas e acessórios originais da época (1837 – 1901). Fashion Bubbles, 2022. Disponível em: https://www.fashionbubbles.com/historia-da-moda/roupas-originais-da-era-vitoriana-1837-ate-1901/. Acesso em: 01/09/2022

RASPANTI, M. P. A calça comprida e a emancipação feminina. História hoje, 2022. Disponível em: https://historiahoje.com/a-calca-comprida-e-a-emancipacao-feminina/. Acesso em: 01/09/2022.

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